Saturday, June 19, 2004

Tapete Marroquino

Tapete Marroquino

I
Secos .
Os pés da Grande Mesa estão secos.
Também estão secos os pés das cadeiras que se acomodam à sombra, estanque, da mesma Grande Mesa.
São pés secos, prolongados; os pés pendidos, retorcidos, enviesados nas oito cadeiras - a visita chegará em hora inoportuna - dispostas perfeitamente, bem como toda iguaria seca posta, naquela Grande Mesa.
São uvas secas, destituídas da água que nos obriga a viver no deserto - o fogo queimará cada milímetro da total secura. São secas as palavras pronunciadas pelos lábios secos. A seca palavra que impele cada cadeira contra o seco assoalho de madeira verde. A importância é seca. Flores secas ornam lágrimas secas da vela cuja parafina não escorre e o pavio não queima. Um defunto repousa seco na outra sala e chora a seca verdade da vida.
Um cacto passeia pelo charco.
As roldanas do velho verão instigam o inverno molhado. A alma está seca. O espinho para o cacto é o apêndice para o camelo. Na aridez do cacto a intempérie do charco.
Uma toalha ressequida repousa e tem pesadelos sobre a mesa - o vinho seco derramado nas tramas de sua vida seca.

II

Um lobo observa do outro lado da varanda. Seu olhar e ganido fazem com que desvie a atenção. O lobo está entre duas rosas: uma, vermelha; outra, está amarela.
Abelhas driblam as telhas e colhem o néctar na cobertura florida. Um botão ainda não se desenvolveu e mostra pequenas pétalas e sépalas.
Apenas um botão.
Nuvens escuras engolem o céu e debulham lágrimas secas sobre a cidade.
Olhos pousam numa rolinha que arisca voa rasante em direção ao cacto. Um vento louco sopra sobre cabeças. Um estupor toma conta de almas.
Viajo entre as abelhas e não encontro meu zangão.

III

Mijo na flor amarela, eternizada no tapete de retalhos que pertenceram a outrem.
A flor amarela absorve o mijo que escorre de um membro senil.
A descarga leva a flor. Ainda, minha inconsciência me faz aflorar.
No mesmo tapete vejo margaridas amarelas que desviam-se do jato com suas pétalas rebatedoras.




IV

Um saco exposto balança pendurado no arame farpado.
As farpas do arame dilaceram o saco que aceita passivamente a intransigência entre o não poder se desprender das amarras do arame e o sobrevoar de uma borboleta fertilizada. O mesmo vento agita distraidamente a taboa inerte no centro do lago. Inerte, a lua se demora na noite, opaca pela vontade de nós dois.
O vento já não é mais suave. O balanço agora é atordoado. A dor do vento é insuportável. Subtrai-se um acorde da dor e o vento permanece indiferente.
Os acordes chegam do tapete morno. A poça amarela é mais verdadeira que o saco que balança.
Um homem com varas de pescar passa agitando o seu podão, e, com um leve movimento ceifa a flor espumante.

V

Dois sujeitos ocultos pela bruma da noite, negro véu lanceolado entre a cerca de arame e os pés secos da mesa, passeiam pela lua visualisada entre o reflexo freudiano do espelho e o horizonte demarcado pela sua silhueta.
Um e outro se procuram a cavalgar o Alazão de São Jorge e a manusear sua espada tão certeiramente quanto o fogo cuspido pelas ventas do dragão matutino.
A lua matreira urina na espada os cristais de suas crateras escravizadas pela poeira cósmica.
As bordas do tapete se enrolam em pensamentos enquanto um gozo frenético exala no ar o cheiro da primeira cópula.
Estamos grávidos de nossa linhagem.

Eduardo Aparecido Ambrozeto




0 Comments:

Post a Comment

Subscribe to Post Comments [Atom]

<< Home